ANTES DA CHEGADA DOS CRISTÃOS EUROPEUS, NATIVOS NORTE-AMERICANOS RECONHECIAM 5 GÊNEROS
Os gêneros tradicionais dos indígenas norte-americanos vão além do masculino e feminino. Com a conversão forçada ao cristianismo, foi imposto também o sistema que só reconhece os gêneros masculino e feminino. Identidades tradicionais combatidas por europeus estão sendo revividas por movimentos LGBT indígenas nos Estados Unidos e no Canadá.
Com a conversão forçada ao cristianismo, foi imposto também o sistema que só reconhece os gêneros masculino e feminino. Identidades tradicionais combatidas por europeus estão sendo revividas por movimentos LGBT indígenas nos Estados Unidos e no Canadá.

nativos norte-americanos reconheciam 5 gêneros antes da chegada dos europeus
hoje ativistas retomam o termo two-spirit
Antes de serem atacados por europeus, grupos que viviam na América do Norte não adotavam dois, mas entre três e cinco gêneros bem definidos, afirma o site Indian Country Today, mantido por povos indígenas.
Essa diversidade foi reprimida pelos europeus que chegaram ao continente em 1492, mas vem sendo resgatada com mais vigor desde a década de 1990 por indígenas LGBT do Canadá e dos Estados Unidos.
A cultura Navajo, localizada próxima à fronteira com o México, concebia, por exemplo, quatro categorias de gênero:
Mulher
Mulher masculina
Homem masculino
Homem feminino

Nascida em 1849, We'Wa, do povo Zuni, era uma ceramista e líder espiritual de gênero biológico masculino e identidade feminina
De acordo com o Indian County Today, algumas culturas incluíam também uma identidade transgênera.
Inicialmente, sociólogos e antropólogos buscaram enquadrar essas identidades dentro de conceitos como os de gays e bissexuais. Mais recentemente, tem-se argumentado, no entanto, que essa leitura é excessivamente ocidental.
Críticos defendem que é necessário buscar ler as identidads de gênero indígenas a partir do ponto de vista desses povos.
Uma lenda Siouan, povo tradicional que se distribuía originalmente pelo centro dos Estados Unidos, afirma que antes de uma criança nascer, essa escolhe entre duas ofertas do criador: arcos e flechas - correspondentes ao papel masculino - ou um cesto - correspondente ao feminino.
O criador pode, no entanto, trocar o objeto de mãos no meio da escolha, impactando na identidade da criança. Esse é apenas um exemplo. Cada cultura tem histórias, costumes e nomes particulares para explicar e definir suas identidades.
Entre os Dakota, originários do centro-norte dos Estados Unidos, usa-se tradicionalmente o termo Winté para determinar alguém do sexo masculino que se comporta como mulher. Para os Ojibwe, povo que se distribuía originalmente ao redor da região dos Grandes Lagos, sudoeste do Canadá, o termo é Hemaneh (metade homem, metade mulher).
Como essas identidades se encaixavam no cotidiano dos povos indígenas
Duane Brayboy, membro da Nação Tuscarora, localizada no norte dos Estados Unidos, afirma que, ao invés de isolar, os grupos indígenas acolhiam essas identidades de gênero.
'Em vez de estarem em um beco social sem saída, como ocorre na cultura euroamericana hoje em dia, a essas pessoas era permitido participar plenamente das estruturas sociais desses povos'
Duane Brayboy`- Membro da Nação Tuscarora, localizada no norte dos Estados Unidos
ROUPAS NEUTRAS
Em muitos dos grupos, pais não buscavam interferir na identidade das crianças, que usavam roupas neutras - não identificadas com o gênero masculino ou feminino - até que formassem sua identidade.
SORTE
Era comum que pessoas que escapavam da ideia binária de gênero fossem reverenciadas. Suas famílias eram consideradas sortudas.
OCUPAÇÕES
Essas pessoas tinham posições de respeito. Indivíduos do sexo masculino que se identificavam com o gênero feminino podiam exercer os papéis de xamãs, visionárias, portadores da cultura oral, artesãs, artistas e enfermeiras durante guerras.
Pessoas nascidas com o sexo feminino, mas identificadas com o gênero masculino podiam exercer o papel de caçadores e guerreiros.
RESPEITO
Entre membros do povo Dakota, era altamente ofensivo pedir que uma pessoa agisse de acordo com o gênero com o qual não se identificava.
Repressão e resistência
A opressão aos indígenas que não se encaixavam nas ideias europeias de gênero ocorreu assim que o contato com os europeus teve início. Membros do governo ou de instituições religiosas obrigavam esses indígenas a se adaptarem a papéis padronizados de gênero.
Casamentos entre pessoas do mesmo gênero biológico foram desfeitos e muitos indígenas cometeram suicídio. A aceitação dessas identidades dentro das próprias comunidades indígenas diminuiu.
A partir da década de 60 do século 20, militantes indígenas norte-americanos voltam a valorizar essa tradição, um movimento que se intensificou na década de 90.
Dois espíritos
A leitura de alguns dos povos da América do Norte é de que essas pessoas nascem com espíritos dos dois gêneros e os incorporam ao mesmo tempo.
Por isso, membros da comunidade LGBT indígena da América do Norte decidiram em 1990, em um congresso na cidade de Winnipeg, no Canadá, adotar o termo “dois espíritos” como um guarda-chuva comum usado pelos vários grupos indígenas do país para indígenas que não se encaixam nas identidades de gênero masculina ou feminina.
Ferida ainda está aberta
A questão da identidade sexual e de gênero não está, no entanto, resolvida. Um estudo de 2014 publicado no “American Journal of Public Health” mostra que a prevalência de suicídios entre LGBT indígenas nos Estados Unidos é maior do que entre outras minorias, como negros ou asiáticos.
Muitos conservadores continuam a insistir em uma "ideologia de gênero" que negaria a "natureza" humana ao afirmar que os gêneros são culturalmente construídos. Para eles, só existiriam dois gêneros, correspondentes aos sexos "masculino" e "feminino", algo que já estaria determinado por "Deus" antes do nascimento.
No entanto, a ideia restrita dos papéis de gênero como a conhecemos hoje, baseada no binário homem/mulher, apenas foi incorporada pelas tribos norte-americanas após a chegada dos europeus, com a imposição das crenças cristãs.
A visão diferenciada dos gêneros, que existia em muitas comunidades indígenas, não apenas na América do Norte, mostra como a cultura de um povo influencia os papéis de gênero e a maneira como enxergamos as expressões e sexualidades de acordo com nossas crenças.
Para os nativos norte-americanos, havia um grupo de regras específicas que tanto homens quanto mulheres deveriam obedecer para que fossem considerados "normais" dentro de uma tribo. As pessoas que reuniam em si características femininas e masculinas eram vistas com reverência, pois se acreditava que tinham grande poder.
Segundo o site Indian Country Today, especializado em notícias sobre povos indígenas, entre os norte-americanos eram reconhecidos 5 gêneros diferentes: masculino, feminino, dois-espíritos masculino, dois-espíritos feminino e o que hoje chamaríamos de transgênero. As nomenclaturas são diferentes para cada tribo, de acordo com os dialetos, mas referem-se a identidades de gênero semelhantes.
A crença dos indígenas norte-americanos era a de que algumas pessoas nasciam com um espírito feminino e outro masculino que se expressavam perfeitamente em um mesmo corpo. Não havia questões morais associadas nem aos gêneros nem à sexualidade; uma pessoa era julgada pela sociedade conforme seu caráter e de acordo com o que contribuía para a tribo.
Desde 1989, nativo-americanos que militavam pela diversidade sexual e de gêneros resgataram o termo "dois-espíritos" (em inglês, two-spirit) para reafirmar sua identidade trans. Assim, "dois-espíritos" passou a ser uma expressão universal para identificar nativos e seus descendentes, que se considerassem transgênero, entre as tribos norte-americanas.
Quando chegaram ao território norte-americano, exploradores que testemunharam a presença desses indivíduos que não se encaixavam no padrão binário do masculino e feminino consideraram aquilo um pecado, uma espécie de maldição que recaiu sobre aquelas comunidades por não se dedicarem ao cristianismo.
A extinção das crenças nativas também aconteceu por todo o continente americano. Colonizadores espanhóis também se empenharam em destruir códices (manuscritos gravados em madeira) aztecas que mencionavam dois-espíritos e seus poderes mágicos. No Brasil, portugueses igualmente se esforçaram para erradicar as identidades de gêneros e comportamentos sexuais que hoje seriam considerados como transgeneridade e homossexualidade.

Zachary Pullin é um Aayahkwew, nome tradicionalmente dado pelo povo Cree para “nem Homem, nem mulher”. Ele é Diretor de Comunicações e Educação da Pride Foundation, em Seattle